sexta-feira, 1 de setembro de 2017

"A Lição do Mendigo" e "O Arrebatamento" - Juarez Azevedo - Crônicas Para Rir e Chorar

"A Lição do Mendigo" e "O Arrebatamento" - Crônicas Para Rir e Chorar - Juarez Azevedo

A    L I Ç Ã O     D O     M E N D I G O   -   Juarez Azevedo

                              Os dois mendigos esmolavam diariamente em esquinas próximas, no centro da cidade. Um deles era o cego Gerôncio; o outro, um aleijado, era chamado pelo povo de Manoel Perneta, pelo fato de possuir uma perna só.
                              Eram dois tipos completamente diferentes. Faziam ponto no mesmo quarteirão, viviam da caridade do mesmo público, mas nunca se aproximavam, nunca eram vistos juntos conversando, nem mesmo sobre os problemas naturais da classe. Mantinham entre si uma distância mínima de cerca de cinquenta metros.



                             O cego era um sujeito calmo, paciente, conformado e manso. O perneta era desaforado, malcriado, respondão. além do mais, era um tipo enjoado, antipático, dirigindo constantemente impropérios, palavras de agouro e expressões de baixo calão às pessoas que por ali passassem e não deixassem cair alguns trocados na cuia que sempre conservava consigo, estendida ao grande número de transeuntes. O cego, não tomando conhecimento de quem ia passando, fazia retinir as moedas que recebia de esmola numa vasilha de metal, contava às vezes a lamúria própria dos pedintes, e só. Aguardava a boa vontade de quem quer que lhe quisesse ajudar.



                        Muitos questionavam a validade da esmola dada aos dois pedintes. Quanto ao cego, falavam francamente:
- Mas como é que pode? Cego, vive de pedir esmolas,mas está com a casa cheia de filhos...
Realmente, o cego tinha já cinco filhos.
Surgiam, então, as suspeitas e conjecturas:
- Aquele ponto deve ser muito bom!
Dizem até que ele tem dinheiro no banco...
                         Aproveitando-se da possibilidade de serem verídicos tais comentários,muita gente ia passando de lado, quando muito, respondendo ao cego com o conhecido chavão: - Perdoe!
Por outro lado, o perneta Manoel, apesar de malcriado, transformara-se numa figura folclórica da cidade, tinha freguesia certa, conhecia todo mundo e de todos era conhecido. Mas, não faltavam os comentários:
- Manoel Perneta pede esmolas porque quer. Tem os dois braços perfeitos e uma perna sadia, bem que poderia ter aprendido uma profissão.



                          A crítica maior que se fazia ao perneta era por causa da maneira arrogante como se dirigia às pessoas para pedir esmolas:
- Ei, me dá aí uma esmola, vai!
Se não era correspondido, como esperava, tome desaforo:
- Infeliz, miserável, unha de fome, condenado!
E, às vezes, rogava uma praga:
- Tomara que... - e dizia um impropério.
                        Quando, várias vezes, parado e observando o comportamento dos dois pedintes, eu dava uma esmola ao perneta, ouvia palavras de elogio:
- Isso é que é gente fina! Um homem desse só pode ser é muito feliz.
                       Eu agradecia mas, dentro de mim, julgava aquele mendigo um homem grosso, um elemento mau, nocivo, desprezível, sem o mínimo de bondade guardada no fundo do coração. Um     dia, porém, aconteceu à minha vista aquilo que para mim parecia impossível.
                       O dia, parece, tinha sido muito ruim para o cego. Sem perceber a direção em que caminhava, o cego Gerôncio deixou o seu ponto habitual e foi-se aproximando do perneta, estendendo a todos a sua vasilha de metal e pedindo uma esmolinha pelo amor de Deus. de pé, escorado em uma muleta, o aleijado estava com a sua cuia bastante recheada de moedas. De repente, o cego se dirige ao perneta e suplicava, sem saber a quem pedia:
- Uma esmola para um pobre cego...
                          Aguardei um desentendimento, uma briga normal entre pedintes por causa do ponto. No mínimo, eu esperava uns palavrões, saídos da boca incontinente do aleijado. Fiquei surpreso. apenas eu prestava atenção ao episódio. O perneta olhou para os lados e, sem qualquer hesitação, despejou o apurado que estava em sua cuia na vasilha de metal na mão do cego. e falou, dirigindo-se a mim:
- É um pobre infeliz. É mais miserável do que eu. Pelo menos, eu tenho a vista para ver!
                      A cena me comoveu profundamente. E aprendi uma lição de amor com um perneta revoltado.


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O       A  R  R  E  B  A  T  A  M  E  N  T  O    -   Juarez  Azevedo

                          Depois da série de estudos que o Pastor apresentou à Igreja, sobre as doutrinas escatológicas, dando ênfase especial ao arrebatamento dos salvos, começou a gerar-se uma confusão entre os crentes. Os mais fracos, sentindo dentro de si uma insegurança e um temor  incomum em crentes solidamente doutrinados, faziam a sí mesmos a inquietante pergunta: "Será que eu vou ser arrebatado mesmo com os remidos, ou vou ficar?"



                        João Frazão, diácono experimentado, crente antigo, vivido há muito tempo na fé, proclamava convicto:
- O arrebatamento pode acontecer até agora, que eu estou prontinho para subir com o Senhor...
Já Etelvina, ao contrário, meio vacilante, havia sido doutrinada por aqueles que pregam a salvação condicional e, insegurança e confessava a sua preocupação:
- Eu não sei não, às vezes tenho um mau pressentimento e penso até que quando houver o arrebatamento, os outros vão subir e eu vou ficar para ser jogada nas "trevas exteriores".



                              João Frazão, crente de convicção inabalável, repreendia a insensatez da irmã Etelvina e aproveitava os temores demonstrados pela crente fraca, e dizia com ênfase dramática:
- Mas minha irmã, quem foi que lhe disse essa heresia, quem foi que lhe ensinou essa doutrina sem fundamento de que um crente verdadeiro pode perder a sua salvação, quem foi?
Etelvina respondia meio envergonhada:
- E os pecadilhos, os delizes que eu cometo de quando em quando contra o senhor, hein?
- Isso é falta de conhecimento da Bíblia - ponderou o diácono Frazão - você não sabe que crente algum jamais perde a salvação? Bem, só se você não é crente de verdade.
- Ah, crente de verdade eu sei que sou...



                             O crente Frazão riu discretamente do susto que Etelvina aparentou no momento, estampado no rosto, e argumentou em tom um tanto jocoso:
- Eu fico até meio desconfiado quando encontro alguém que se diz um crente em Cristo, receoso, com medo de perder a salvação a qualquer instante.
E acrescentou dogmático:
- Ora, ora... Já imaginaram? O crente está bonzinho hoje, pronto, está salvo. Se comete um deslize amanhã, perde a salvação, corrige-se, volta a ser salvo. Peca outra vez, arrisca-se a perder novamente a salvação. Isto é um permanente estado de aflição, o crente vai passar a vida toda preocupado, fazendo força para morrer num dia em que esteja salvo, pois do contrário será jogado nas trevas da perdição.





                               Etelvina ouvia tudo, mas as palavras enfáticas do Pastor soavam fundo lá dentro dos seus ouvidos:
- Ouçam bem, irmãos, o que diz a palavra de Deus: "Então, estando dois no campo, será levado um, e deixado o outro; estando duas moendo no moinho, será levada uma, e deixada outra". - Mateus 24:41, 42.
                           A repetição do texto do Evangelho de Mateus várias vezes durante o sermão deixou Etelvina aflita e perturbada, emocionada e nervosa, só pensando que se alguém teria de "ser deixada" ela seria a primeira.
                          O pior, porém, foi que naquela noite, o marido, por necessidade, viajara a serviço, e Etelvina decidira trazer Juninho, o filho de três anos, para dormir com ela na cama de casal.
                          Noite insone e intranquila - comenta, Etelvina. Adormecida a muito custo, mas, impressionada com a iminência de um arrebatamento repentino, acordava assustada, passava a mão, de lado para ver se o filhinho estava lá, acalmava-se, tentava dormir outra vez, certa de que, até aquele instante, o arrebatamento não acontecera.



                         Já amanhecendo o dia, exausta de tão inoportuna vigília, Etelvina adormeceu. Quando acordou, dia já claro, olhou para a cama e não viu o menino. Então gritou apavorada:
- Juninho! Juninho!...
Nada de resposta.
Etelvina monologou, em voz alta, chorando aos prantos:
- Eu não disse? Meu filho foi arrebatado e eu não fui... ai! Ui!...
E repetia, à sua maneira, o que entendera dos estudos do pastor.
- E, havia dois, eu e o Juninho, meu filho foi levado e eu fui deixada, o que é agora que eu posso fazer?
                            Vestiu-se apressada, de qualquer jeito, e saiu desesperada, porta afora, buscando uma resposta para a sua aflição.
                            Na primeira esquina, cruzou com o Diácono Frazão que, apressado ia buscar pão na padaria. Ao longe, viu se aproximando o zelador da Igreja. Encontrou vários crentes, no seu caminho sem destino. Resolveu voltar para casa. Quando abriu a porta, ouviu o som de um gemido inocente, que procedia do seu quarto, e desconfiou:
- É, parece que eu me enganei, o arrebatamento ainda não aconteceu não...



                        Vasculhou o quarto. Olhou para debaixo da cama, e, surpresa, viu o Juninho roncando, dormindo a sono alto, como se dormisse num colchão de penas de passarinho. Ele, agitado e inquieto, tombara para o colchão num vazio existente entre a cama e a parede; do chão, rolara para debaixo da cama onde, a seu modo, dormira confortavelmente.
                         Puxando o menino e apertando-o contra o peito, Etelvina exclamou, dando um grito de satisfação:
- Graças a Deus, o arrebatamento não aconteceu!
                         Deitou-se novamente na cama, com o Juninho nos braços, e, agarrada ao filhinho, dormiu tranquila e sossegadamente. Até o meio-dia.


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